30/03/11

Indolor

O cheiro de cães a arder penetrava-me as narinas. Percorri o corredor do gatil, onde olhos estavam dentro de celas. Onde passos davam voltas sem fim sobre o cimento sujo de fezes e ração. Onde vidas evaporavam no ar como estreito fumo sem razão. Onde vozes eram caladas pelo silêncio da prisão. Onde o tempo ruminava o espaço, os segundos carregavam o esgar da derrota.
O cheiro de cães a arder beliscava-me a pele. O homem que caminhava à minha frente contava-me que tinha afogado uma ninhada. Vacilei, perdi-me, porque eram demasiadas vidas para contar. Os meus dedos tremiam arrastando-se nas grades, os olhares imploravam por uma morte veloz que os levasse a verdes pradarias ou à absoluta escuridão. Porque na escuridão se pode imaginar uma liberdade.
Lá fora, vários cães esperavam para morrer respirando o cheiro dos anteriores. Mesmo nesses últimos momentos não lhes foi concedido o direito da imaginação. Não os quis olhar nos olhos. Fugi do meu coração. Desejei entrar com eles naquele forno e segurá-los até ao último fôlego, embora soubesse que estavam mortos antes disso. Mas quando, questionei-me. Quando se morre?
Talvez tenham morrido dentro das celas, onde sabendo-se invisíveis se coçaram com os dentes até provarem sangue. Talvez tenham morrido na mesa do veterinário, quando uma mão velha de homem os assassinou com uma seringa. Talvez eu os tenha morto quando infiel desviei o meu olhar.

Estes cães foram largados inocentes no meio da rua. Correram durante meia hora atrás do carro que os tinha abandonado, sorrindo meigamente até sucumbirem de exaustão. Estes cães foram amarrados a postes e deixados para morrer. Foram depositados em ninhadas dentro de caixotes, de carrinhos de supermercados, em parques de estacionamento. Estes cães foram "disciplinados". Foram "ensinados". Foram "treinados". Estes cães foram pontapeados.
Entendi o que se passava com o mundo. Temos o Amor em jaulas. Temos o Amor em caixas a dar voltas sobre si mesmo em loucura. Atiramos o Amor para fornalhas em dias pré-marcados nos calendários. Deixamos o Amor morrer depois de o curvarmos com a nossa violência. Partimos-Lhe o pescoço e chamamos-lhe indolor.

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