31/05/10

Ruído


Estou farta dessas malditas perguntas. Não saberão eles que todas as palavras caem no chão? Não perceberam ainda que quando eles falam, tudo o que chega ao destino são meros ecos de voz?, meros fiapos de energia instável?, uma coisa que não toca ninguém, que não belisca ninguém, que não atira ninguém ao chão?
Não terão ainda percebido que todo o som está morto a partir do instante em que nasce? Tal como nós.
Por isso devemos calar, devemos aquietar-nos num acordo não pronunciado. E talvez, eu acredito, se calarmos toda essa morte tirana que nos rasga pela boca fora, se engolirmos todas essas palavras que expelimos como cadáveres a cair de um lugar muito muito alto, nós acabaremos por ouvir. Algo tão poderoso que essas palavras que vomitamos extinguir-se-ão para sempre como mais uma peste histórica.
Mas a parte difícil é esta, só vamos ouvir quando todos estivermos calados. E nem todos concordam, somos um bando conflituoso, fritamos a carne em medo. Precisamos do veneno das palavras tanto quanto tememos ficar a sós com o silêncio.
Essa parte é, alerto, mesmo muito difícil. Porque, - e se atentarem irão facilmente confirmá-lo, - há sempre alguém a tentar dizer-nos alguma coisa.
Está nas paredes.
Está nas ruas.
Já entrou nos nossos ouvidos.
E eu sei, pobres escravos, que não têm forças para quebrar o deleite infinito da confortabilidade. E eu sei, é uma longa escada, com muitos degraus difíceis. E para subi-la, ninguém quer deixar nenhuma bagagem para trás.


Mas peço, poupem-me só a mim. Em nome da compaixão que as vozes dizem que todos merecemos:
Visto que na verdade não querem ouvir,
então não me façam perguntas.

30/05/10

A Glória

«Em menino, desejei a glória. Nessa idade, desejamos a glória como desejamos o amor: precisamos dos outros para nos revelarmos a nós próprios. Não digo que a ambição seja um vício inútil; pode servir para espicaçar a alma. Simplesmente, cansa-a.  Não sei de nenhum êxito que não se compre com meia mentira; não conheço ouvintes que não nos forcem a omitir ou a exagerar qualquer coisa. Muitas vezes pensei, com tristeza, que a alma realmente nobre não alcançaria a glória, porque não a desejaria. Esta ideia, que me desenganou da glória, desenganou-me do génio. Muitas vezes pensei que o génio não passa de uma eloquência particular, um dom barulhento de exprimir. Mesmo que eu fosse Chopin, Mozart ou Pergolese, diria apenas, talvez desajeitadamente, aquilo que um músico de aldeia sente todos os dias, quando tenta o melhor possível com toda a humildade.»

Em Alexis, por Marguerite Yourcenar

07/05/10

Hoje


Esqueci-me de mim a tentar esquecer-me de ti.
Milhões de anos entre nós, o meu cabelo cresceu.
Esqueci-me do sabor da chuva nas nossas blusas
e do som dela nos telheiros do caminho para casa.


Já não sei como é ser ouvida quando falo.
Os meus olhos aprenderam a calar, a ter vergonha.
Caminhei milhões de anos e não reencontrei a tua porta.


...
Hoje vi-te de novo pela primeira vez.


E és as milhares de histórias que tinha jurado esquecer.


Rostos reuniram-se à frente dos meus olhos
e fazem tanto barulho que só preciso
que me relembres do meu nome.

02/05/10

Existir

Não basta o facto de eu simplesmente existir; eu tenho que fazer alguma coisa.
Não basta ficar o dia todo a olhar pela janela, sentir no meu corpo o formigueiro das células que morrem a cada instante.
Não basta sugar a programação televisiva inteira, de trás para a frente, apesar de a terem criado de propósito para mim, e de generosamente ma darem à boca às colheradas.
Não basta rir quando numa festa alguém conta uma piada difícil de entender.
Não basta fazer as palavras cruzadas do jornal.
Não basta passar os dias a despedaçar-me no sofá, deixando que a realidade fuja de mim à velocidade da luz. A realidade... Onde raios anda essa puta? ...Onde é que ela está, afinal?


Porque já percebi...
Que não basta eu acordar todos os dias nesta dimensão absurda em que um planeta inteiro está colocado nas mãos de monstros.
Não basta eu defender o fim dos estereótipos, eu usar elixir bucal, eu não olhar directamente para as chagas dos mendigos.
Nada parece servir para alguma coisa. Eu aprendo, mas não aumento. Eu avanço, mas não progrido. Eu sofro, mas não consigo sangrar.





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