15/10/10

Era Uma Vez

Duas crianças dormiam. Sonhavam que estava a chover.
As gotas de água caíam e mordiam-nas, como dezenas de piranhas. Mas a carne não sangrava. Em vez disso, a pele caía em véus, transparente, até pousar em alguma poça de água no chão.
As crianças sacudiam-se de susto e confusão, vendo o seu corpo despedaçar-se em camadas. A dor era quente e lasciva. As crianças trocavam olhares de intimidade febril.
Por debaixo da pele caída, um novo corpo emergia - dourado e desnorteante, como os olhos de um tigre.
As crianças notaram que as gotas que caíam no chão faziam nascer ervas daninhas. Daquelas que sugam o solo com uma fome de mendigo, e nunca se esgotam de querer.
Passados momentos, as crianças viram-se nuas. Toda a sua pele anterior tinha caído e servia de alimento a outras pequenas histórias. Então, entreolharam-se pela última vez essa noite, e deitaram-se para se amarem até de madrugada. Sobre o verde reluziam os corpos unidos, dilatando-se no silêncio como dois raios de sol.
A chuva tornou-se branda e em breve as ervas daninhas se tornaram lençóis. As crianças acordaram embaladas pelo ar morno da manhã. Abriram os olhos sem se lembrarem do que tinham juntas sonhado. Acotovelaram-se espreguiçando-se longamente. Esfregaram os olhos e observaram-se - este olhar levantou silêncio.
Havia algo escrito por debaixo dos lábios mas as crianças não sabiam ler. Havia algo a romper de dentro dos olhos mas as crianças não conseguiam ver. Restava um sabor de certeza e sangue, que elas conheciam sem terem ainda provado.
Então, como sábios decidiram esperar, sabendo que haviam de cumprir todas as profecias que ainda desconheciam.



Fim




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