23/01/10

Identidade

Cometi mais um erro hoje. A culpa é de não dormir. Espero que feches os olhos e ignores o bilhete que deixei por debaixo da porta.


No dia em que eu olhar para ti e não cair no abismo, eu vou saber que já não sou eu. Nesse dia, eu vou ver, impotente, afastada, a minha própria morte.

22/01/10

Retiro


Fizemos um retiro de quatro dias no sótão. Cheirava a ganzas e a incenso. Os dois fumos misturavam-se no ar como cavalos em corrida leve. Os cobertores misturavam-se com os pés como melaço, escorregando pelos dedos pacientes.


Deixámos as palavras subirem, descomprimidas no tecto inclinado. O baixo da música rugia contra as nossas nádegas sentadas.


A vida foi doce, nesses dias. Sem frio, sem fome, sem sono. Tudo parecia fumegar. Até os actores dos filmes antigos em que nos confundíamos com cada olhar.


Trincámos bolachas de canela e desistimos permanentemente do scrabble, em que ela fixava perdidamente as peças sem lhes encontrar sentido.


Debatemos o poder, a culinária, o sexo, os amendoins. Fiz massa em forma de lacinhos. Descansámos no telejornal e ouvimos a chuva dedilhar insistentemente as ondas do som.


As noites foram brandas de luzes, de velas meio acesas, de televisões meio apagadas. Os aquecedores seguiam-nos sozinhos para todo o lado como velhos rafeiros. A piscar de exaustão.


Como disse, foram lentos e doces esses dias, e vive-los-ei para sempre. Porque enquanto me lembro, vivo; enquanto recordo, aumento. E é nisto em que estou a pensar agora, enquanto escrevo o que estou ainda a viver.




21-01-10 (O 4º dia)

13/01/10

A Semelhança, a Representação e a Vertigem do Fim

Tive medo de encher a banheira, tenho sido vítima de desequilíbrios.
Às vezes penso que talvez não seja digna de purificação.
A mesa suga os líquidos de dentro de todos os meus copos,
todas as noites morro de sede caída no chão.
A única força em mim é a inércia dos baloiços abandonados,
embalando-se a si mesmos na escuridão do parque.
Mas quando expludo subindo pelas paredes acima,
sou o piano de Beethoven, sou a caneta de Rilke, o pincel de Munch.
Sou uma rapsódia, um templo, um passarinho.
Sou as veias da terra, as barbas do mar.
Ou um tsunami de proporções apenas megalómanas.
Sonho, canto e dispo. E quando amanhece, calo o olhar,
enrolada como um feto nos pântanos
à espera da noite seguinte.

13-01-10



Hoje a Lillie disse-me...

Vamos dando açúcar e recebendo coices.


11/01/10

Encontro

Estava um dia de frio insuportável. Encontrei-a à porta. Fumegava da boca, do pescoço e do café. Parecia entretida com um nó no estômago.

Olhei-a até me cansar. Depois olhei outra vez. Ela tinha as mãos vermelhas como se o sangue quisesse escapar pelas pontas dos dedos, talvez para compor um quadro impressionista. Debaixo dos olhos dela, pensei ver duas sereias, mas eram só olheiras normais. Senti pena. Pensei em meter conversa, por piedade. Sou sensível à solidão. Mas tive medo que me fumegasse para cima até eu embaciar.

Não há maneira engenhosa de dizer isto; foi constrangedor. Quando abandonei a triste criatura, ela partiu também, para o simétrico universo que existe para lá dos reflexos dos vidros. Ainda trocámos um último olhar, e verifiquei que o meu cabelo estava despenteado.

 

10-01-010


 


06/01/10

Deus, Pornografia e Fast-Food


Fará Deus ideia da quantidade de vezes que o seu nome é evocado em filmes pornográficos? Os momentos em que mais sou relembrada do nome do Senhor é enquanto assisto a pornografia. Não faço ideia do que isso possa significar. Mas não deixa de ser interessante. É como se a fé tivesse fugido das ruas, das igrejas, dos pelourinhos, e se tivesse escondido nos estúdios mal saneados onde oleadas vaginas saltam em cima de caralhos pulsantes. Tudo isto enquanto uma câmara filma, para que milhões e milhões possam desfrutar em privacidade de uma poderosa experiência religiosa.


Quando dou o primeiro gole, ela ainda costuma estar a fazer-se desentendida. Quando dou o último, já ela está a receber com um sorriso estupidamente infantil jactos de esperma por cima do seu peito.


A pornografia é uma coisa muito bonita. Faz-nos esquecer de toda a realidade, por ser tão completamente falsa. Nada daquilo satisfaz a nossa inteligência, mas também não chega a chatear, por estarmos tão tesos. No fundo, vendemos o nosso bom gosto por foda. Vendemos a nossa moral. O nosso sentido crítico. A nossa sensibilidade humana. ...E depois vimo-nos, mais cedo ou mais tarde. E depressa olhamos para o lado, enojados.


As raparigas da pornografia partem-me o coração. Quando mais inocentes parecem, mais porcas são, e não há nada que possamos fazer para nos esquecermos disso. Depois de termos visto uma pessoa de quatro a levar com tanta força que os olhos se lhe entortam, não conseguimos propriamente voltar a olhar para a pessoa sem essa imagem presente. Primeiro, porque não as conhecemos fora desse contexto, e segundo, porque mesmo quando elas parecem estar a demonstrar um pouco de quem são, esse momento dura dez segundos até à cambalhota seguinte. Por isso, no fundo, pensamos nelas como seres humanos de dignidade descartável. E esta dignidade pode durar apenas tanto tempo como um diálogo iletrado acerca de marotices.


Aparte a pornografia caseira, parece-me sempre idiotia pretender representar num filme porno um casal que busca reavivar a chama no seu longo casamento. Isto porque é uma máscara insustentável; quem está ou esteve casado sabe muito bem que não é assim. Para além de todo o acto se assemelhar a uma demonstração de ginástica acrobática, não há um único olhar, uma troca de palavras, nem uma pausa para respirar. Nada. Ou talvez estejam com demasiada pressa, por os miúdos estarem quase a voltar da natação.


Quando dou a primeira passa, ele ainda está só a olhar para ela com ar de imbecil ostentando a voluptuosa protuberância nas calças. Quando dou a última passa, já ele bufa de alívio por aquela merda ter chegado ao fim. Sacode o membro dorido com o resto do líquido sagrado que sela o fim da cerimónia.


Ao fim e ao cabo, não temos desculpa para ver aquela porcaria. Nem as gajas são assim tão boas, nem as imagens as que queremos ver. Vemo-lo porque a solidão é rasca, e nos leva a vasculhar no lixo. Vemo-lo porque a pornografia é a fast-food do sexo; mata a fome momentaneamente, é rapidamente engolida e só pensamos no quão repugante é depois.


Há quem se sinta mal. Há quem se sinta culpado. Eu encho outro copo e abraço a natureza humana.



06-01-10

Receita (25 de Dezembro)

Raiva sendo o néctar das lentas mortes.
Raiva sendo a chuva ofegante contra o peito.
Raiva em todas as preces por finais inesperados.

E nunca,
nunca
nunca
esconder.

Love O'Love

Tenho o punhal na mão, a sangrar silêncio na página que diz

O Amor Não Nos Falhará.
Fecho os olhos e sei, não posso ser sempre eu a rasgar os cenários. Quero ser o grande vazio às vezes, e planar.
 
Quero que percebas com os teus próprios olhos.
 
Ao teu peito pertence o meu punhal.

 

 

26-12-09

O Feitiço

Cada luz da manhã nos nossos olhos, uma ferida. Cada anoitecer ensalivado, mais um mergulho num furacão.
Não vamos desperdiçar o tempo. Vamos levando a boca à garrafa, os olhos ao fumo. Vamos levando as mãos ao peito, esmagado de introversão. É uma terceira puberdade. Uma segunda infância. Uma primeira velhice. Em que todas as luzes se apagam.
Dançamos s e m e s c r ú p u l o s em todas as espeluncas, saltamos com tanta força que voamos, ou ficamos flutuando em cambalhotas no ar. A música penetra-nos até à virgindade. Não há roupa sem suor. A gravidade arranha-nos os tendões, vagarosa.
Corremos à chuva pelo autocarro, damos a mão e o nosso cachecol é subitamente a p r ó p r i a g a l á x i a ; depressa nos vemos perdidas.
Tudo é mágico nesta história. As facas da cozinha. O açúcar amarelo. Os lençóis. Os cereais de pequeno almoço. Os metros infindáveis. Chegamos a casa já fazendo amor.
As minhas roupas correm a tapar todas as janelas, o escuro agarra-nos os corpos. E somos apenas notas de uma melodia maior.
Tudo é trágico nesta história. O medo. As plantas da sala de estar. As lágrimas. As promessas.
...Mas as roupas caem e mesmo junto da luz, o feitiço não se quebra.

08-12-09

The Private Teacher (28 de Novembro)

I m a y c h a s e y o u b u t I w o n ' t e a t y o u .



Tu e Eu

Neste momento, eu faria amor contigo como se fosse a primeira vez.
Não me lembro, aliás, de ter feito amor contigo de alguma outra maneira.Cairiam pétalas do tecto enquanto os meus lábios te viajavam, e talvez escutássemos chuva lá fora, como que tombando nas teclas de um grande piano, largando uma melodia só nossa e movendo a passagem do tempo.
O ar tornar-se-ia denso, perfumado de desejos, espantado consigo mesmo. Revolvendo-se em fluxos de luz, cor, som e aroma - todas as matérias-primas do Criador.


Escreveríamos um romance de mil páginas apenas com as palavras que suspiramos nessas noites. Nada nem ninguém nos vigia e é toda nossa a liberdade dos amantes voadores.



Tu e Eu, sem escrúpulos, prisioneiras da nossa pele, e em expansão infinita através da trama do Universo. 

26-11-09

 

Newsflash! (23 de Agosto)

Não há antídoto.

Pensamentos Profundos (9 de Agosto)

Ri-se de mim: Tu consegues lá pensamentos profundos sem estares completamente charrada.

Mando-a ir-se foder. Consigo sim. Sou a porra de uma metralhadora de pensamentos profundos. Vê-me só.

Não encontro uma caneta. Desisto. Ela ri-se outra vez, disfarçadamente. Vou até à cozinha, enfio um chupa na boca e dispo os calções e as cuecas. Sento-me na bancada com ar de puta e assobio. Ela vem. Quando me vê de pernas abertas, começa a andar devagarinho como um gato matreiro, e como um gato baixa ligeiramente a cabeça para não dar nas vistas. Quando está muito perto de mim, cheira-me o pescoço como se eu lhe fosse estranha. Depois arranca-me o chupa da boca e passa-o entre as minhas pernas. Eu sustenho a respiração, chocada, punida. Ela enfia o chupa na boca e roda-o lá dentro, esfregando-o na língua, com a boca aberta. Depois diz: Não prestas para nada.

Depois repete: Não prestas.

Agarro-a pelo pescoço com tanta força que os olhos quase lhe saltam. Num impulso atiro-a ao chão, não bate com a cabeça porque se apoia nos cotovelos, mas os longos cabelos castanhos agitam-se ondulantes em câmara lenta.

Depois sento-me na cara dela e faço-a pedir-me desculpa. Ela resiste. Eu agarro-lhe os cabelos e monto-a, vingativa. Ela cede e agarra-me as coxas enquanto se alimenta de mim.

A TV ficou ligada, oiço o noticiário da sala, começou a época de incêndios. Ardem colheitas, casas, animais. Árvores centenárias. Olho para baixo e ela continua a lamber, não se podia estar mais nas tintas. Há pequenas gotas de suor a escorregar em volta do pescoço moreno. Penso em levá-las para apagar os fogos. Mas em vez disso deixo-me estar.

O repórter da televisão fala em mortos, fala em lares destruídos, em famílias desesperadas. Sentada na cara dela, eu fecho os olhos e tento ter pensamentos profundos.

(7 de Agosto)

Black bears wrestle to bond.


Ela - Premonição (2 de Agosto)


Vou imaginá-la com os olhos abertos, para que a realidade me socorra. Tem de ser denso mas quente. Transcendente mas carnal. Já sei.


O coração dela bate ao ritmo de Portishead.


Quero continuar. As minhas mãos levantam-se no ar como se me preparasse para tocar num enorme piano. Os dedos esticam-se e contorcem-se, buscando tocar a poesia líquida do ar. Os meus ombros arrepiam-se, num vazio ansioso. Vou imaginá-la com as mãos abertas, para que o mundo me possa agarrar. Ela está à minha espera no topo de uma montanha que escalou durante dias, sozinha e descalça. No entanto os pés dela permanecem intactos, como que por magia.


Pouso a caneta observando a minha sombra. Se eu imaginasse nestas paredes um enorme oceano, a minha sombra é tudo o que eu seria. E fecho as mãos cega de poder, de poder escolher ser apenas isso. Poder ser qualquer coisa.


Ela tem o cabelo caído sobre o rosto, e nada conhece acerca da Beleza que esperam que ela simbolize. Quero tocar mas tudo o que sinto aqui é a minha própria textura. Quero provar mas tudo o que tenho aqui é a minha própria saliva. Fecho os olhos para que a realidade não possa salvar-me nunca mais. Ela dançará comigo flutuando, para que nunca nos pisemos acidentalmente. A luz da manhã vai soltar fiapos brilhantes à nossa volta, e ela vai chorar comigo apenas de felicidade. Vamos passar as noites acordadas em demandas imaginárias. Como crianças perdidas. Nos olhos dela vou encontrar a selva e o lar.


Vou resgatá-la agora, deixando o escuro para trás. Charcos de poesia líquida para ela beber das minhas mãos. E hei-de encontrá-la, e vou amá-la, de olhos fechados e de mãos abertas.


... (29 de Julho)


Sobre quem brotarão as palavras




quando falecerem todas as amantes?






Divagações em Dueto (12 de Julho)

(...) A única parte divina acerca dos acontecimentos é, justamente, a Escolha. E a única parte misteriosa somos, surpreendentemente, nós mesmos, arquitectos e construtores distraídos das obras de arte com que nos deparamos, desconhecendo que é nosso o mérito, e não da Coincidência.

Poderás responder, - e o fluxo que corre dentro de nós, não será ele divino? – e eu responderei, sim, absolutamente. Mas será ele sempre a comandar os nossos pés, as nossas mãos? Será ele quem traz os momentos-chave até nós? Ou será ele apenas o processador? – E tu, cheia da sabedoria da tua paixão, responderás, mas não estará o fluxo divino em tudo? Nas mãos, nos pés, nos acontecimentos, na brisa, nas sensações, nas aparentes coincidências? E eu render-me-ei – sim, tens razão. Tudo é divino, tal como nós. Somos criação, depois criadores. – E no fim faremos amor até anoitecer, porque nada mais nos resta.


Até ao pôr-do-sol (24 de Junho)




Era manhãzinha. Abri a janela à amante e mostrei-lhe o quão fresco é o cheiro do Mundo. Os pássaros tagarelavam e o ar revolvia-se a emoldurar o quotidiano. Ela não queria sentir, por isso insisti um pouco. Então as suas asas abriram-se, frágeis e renitentes, e voando timidamente lá foi ela em direcção ao fim desta história.

Fico na cama, despida. Oiço os gatos vadios delirando na rua, a procurar esfomeados onde depositar a sua fúria sexual. Murmuro-lhes que às vezes mais vale esperar pela chuva gelada. Não vai chegar o nosso casulo. Não surgirão os olhos perfeitos que nos farão florescer. Não podemos continuar à espera.
 
Tapo-me com os lençóis até não ver um ponto de luz.
Até ao pôr-do-sol gememos, eternamente vadios, eu e todos os gatos.

Canção de Amor (21 Junho)

Oiço as canções de amor dos outros e sorrio, feliz por haver quem ame. Estou de sol no rosto e bainha na mão. Não há canção para mim. Não faz mal. Eu sorrio ouvindo as dos outros, sozinha, triunfante de escuridão e desejo. A poesia diz-me para esperar. Que ficarei forte e maior. Que alguém vai querer segurar-me. Mas eu só quero que me larguem, que me soprem.
Porque o meu amor está no vento.
Está no brilho de todos os olhos.
E nas minhas asas ardendo na luz.
Está nos livros empoeirados.
No silêncio do beijo.
Nos pianos irrequietos.


O meu amor está vibrando em todo o lado a toda a hora.

E foge, para eu nao parar de o encontrar.

Beatas (9 de Maio)

(Chovem beatas no meu telhado e há musgo a crescer em mim.                                                                                                                      As horas passam e fogem depois de me montarem como prostitutas  bem ensinadas. Pequenas florzinhas brotam da humidade do meu corpo.)


Tenho a certeza de que não te lembras de quando adormecias ao meu lado e eu ficava a noite inteira a contar os teus cabelos, fios brilhantes de certeza. Brilhantes de promessas.
Às vezes gritavas comigo e eu apaixonava-me ainda com mais força pelos teus olhos. Doente.


Agora as noites são límpidas de sonhos e ninguém chora. Sinto falta das tuas lágrimas na minha cara, porque estavas perto. Tão perto.


(Queria alguém a chorar contra mim.
Alguém que arrancasse este musgo.)

Quase (8 de Maio)

Tenho algumas cicatrizes a confessar. Atravessam-me a alma até à epiderme. Exibem-se desavergonhadas a quem me despe.

Estou quase preparada, mas não realmente.
Sou sempre acompanhada, mas não realmente.
Estou quase equilibrada, mas não realmente.
Sou quase amada, mas não.


Tenho um pássaro sonolento na janela e uma amante voadora na cama. A tarde cose juntos os nossos corpos, flutuantes entre fiapos de luz. Vejo-nos no espelho,
eu e ela
no ar.


Não temos peso nem densidade, somos só cor e afecto, fome e reflexo.

Sou quase amada, mas não.


Amor Nocturno Subaquático (29 Abril)

Vieste de madrugada quando eu já estava sóbria. 
As veias quase saltavam do teu braço, quase
rompiam a pele, tão inchadas e azuis. Eu acendi um
cigarro de mentol e apercebi-me de que o meu romance
não tinha futuro.
Pensei em Greene, pensei em Cunningham,
em Palahniuk, pensei no teu sexo vertendo os meus
sonhos. Mas nada.

As palavras junto de ti esvaíam-se em desejo.
Os teus lábios cheiravam a baunilha dentro
da minha cama e sorrimos até o sol raiar.
Os meus pés contra os teus pés. A pedalar o sono.
 


 Amor          Nocturno          Subaquático