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28/03/11

Nexo (2007)

Vou deixar um bilhete para ti em cima da cama. Tu não vais compreender o que o bilhete diz, atordoado entre palavras e frases sem nexo. Vais perceber que o bilhete é meu por causa da falta de nexo que sempre distinguiu os meus gestos dos outros gestos, as minhas palavras das outras palavras.
Vais questionar-te por momentos acerca do que terás feito de errado, mas com satisfação desistirás dessa busca, atribuindo todos e quaisquer atritos à minha permanente incongruência.
Vais rasgar o meu bilhete e suspirar, caminhando para o quarto. As minhas roupas terão desaparecido por essa altura. As minhas cartas. As minhas cores. Só ficarão as cicatrizes da minha passagem. Permanecerão apenas os objectos que mudei de lugar para deixar a luz atingir-te o rosto.
Vais precisar de cerca de meia hora para te aperceberes de que levei tudo comigo, as noites, os perdões, as dores entornadas pelos corpos, a música. Levei o sangue e a saliva. Só deixei o bilhete. Devias sentir-te esmagado pela minha arrogância. A porra de um bilhete em troca de tudo.
Mas não te vais sentir esmagado. Não vais sentir uma pontada de dor, sequer. Não sentirás absolutamente nada, para já… a não ser talvez uma levíssima perturbação, um vago não-entender, voz subterrânea imperceptível.
Depois disto, eis o que vai acontecer; vais prosseguir com o quotidiano, a coreografia. Tudo vai parecer igual, cada previsibilidade será cumprida.
Mas eu, nunca serei substituída. Nenhuma outra mudará os objectos de lugar. Nenhuma mulher virá contrariar o teu nexo, a tua sensatez crónica. E lentamente começarás a aperceber-te da minha falta. Começarão a doer-te os espaços vazios que eu costumava habitar. As tuas arestas tornar-se-ão demasiado pontiagudas para o teu espírito e vai doer, vai doer, vai doer meu amor, a solidão, a forma como ela serpenteia dentro de ti sem rumo pré-agendado. Vais ter saudades da minha loucura, da minha desorganização propositada, dos meus abraços longos demais. Vais ter saudades das divergências, discordâncias, das encruzilhadas.


Tu, companheiro, virás procurar-me com pedaços do meu bilhete rasgado. A tua memória tingida com imagens do meu rosto já disformes, porque o tempo confunde as pessoas. Como esperarás reconhecer-me…? Encontrar-me-ás através da única coisa que sempre distinguiu os meus gestos dos outros gestos, as minhas palavras das outras palavras. E caminharás para mim  carecendo de tudo aquilo que sempre te repeliu. Chegarás transpirado e exausto, rendido até ao fundo do teu olhar, e entre nós não voltará jamais a haver lugar para o nexo.

6 da Tarde (excerto)



(...)

A mulher saiu do café, ansiosa por encontrar o carro para se sentar. Queria regressar à dimensão das ondas suspirantes, pairar nua num azul imenso com cheiro a sal. Mas de alguma forma sentia no seu íntimo que essa dimensão tinha sido dizimada para sempre com aquele encontro. Voltou-se para trás, o rapaz continuava sentado na mesa do café. Através do vidro viu-o, angustiado, fazer um desajeitado origami com um guardanapo. Um cisne. Que bonito, pensou ela, um cisne. E parou, por momentos, mergulhada num qualquer grão de poeira que pairava. Quando olhou novamente para o cisne, tudo tinha mudado outra vez, e ao invés de ser bonito, aquele cisne era mais uma banalidade grosseira. Lembrou-se de ter pensado, que bonito, um cisne. E envergonhou-se, curvada, no meio do passeio.

Porque estou curvada?, pensou a mulher, e depois percebeu, Ah, é porque está a chover.

[Mulher] – Não quero morrer aqui.

A mulher preferiu ir para casa.

(...)

16/03/11

A Pêra Que Caiu Nas Minhas Mãos

(Vou deixá-la cair aqui.)

Duas irmãs numa cama fria. Lá fora os sons da noite a rasgar o tempo em retalhos desiguais. O vento, a terra, os cães. Elas estão descalças, e os pés desejam juntar-se numa fricção desesperada para criar calor. Mas o calor não virá, os pés são blocos de cimento gelado, meteoritos caídos para toda a eternidade.
No quarto ao lado os pais ressonam num dueto. Os seus membros estão enterrados no colchão, inflados de sangue e cansaço.
As duas irmãs estão acordadas, no meio do silêncio e da escuridão. E imersas nesse imenso Nada, nesse eco de palavras não ditas, são uma para a outra a única familiaridade. Elas entreolham-se, adivinham o rosto que se esconde por detrás das trevas, dizem: Aqui está uma boca, aqui está uma orelha. E os seus dedos viajam ao longo do rosto, ao longo do peito… Em breve exploram mesmo aquilo que não conseguem adivinhar no escuro, mesmo aquilo que nunca viram.

Fazem amor. Sem possuírem uma palavra. Erguem uma fogueira no desejo de inventar a luz. E avançam em generosas braçadas até à fonte, ao centro, à primeiríssima faísca. Amam-se ao contrário; projectando-se de volta ao átomo-Pai.

Por fim, o sol começa a nascer, arrogante da sua pontualidade. Elas repousam nuas, seios brilhantes de saliva, mãos prostradas sobre os ventres. Regressaram de uma viagem que em breve se tornará segredo. Quando isso acontecer nada neste retrato vai conservar o seu odor. A lembrança vai oxidar, como uma pêra demasiado madura.

(Aqui.)


15/10/10

Era Uma Vez

Duas crianças dormiam. Sonhavam que estava a chover.
As gotas de água caíam e mordiam-nas, como dezenas de piranhas. Mas a carne não sangrava. Em vez disso, a pele caía em véus, transparente, até pousar em alguma poça de água no chão.
As crianças sacudiam-se de susto e confusão, vendo o seu corpo despedaçar-se em camadas. A dor era quente e lasciva. As crianças trocavam olhares de intimidade febril.
Por debaixo da pele caída, um novo corpo emergia - dourado e desnorteante, como os olhos de um tigre.
As crianças notaram que as gotas que caíam no chão faziam nascer ervas daninhas. Daquelas que sugam o solo com uma fome de mendigo, e nunca se esgotam de querer.
Passados momentos, as crianças viram-se nuas. Toda a sua pele anterior tinha caído e servia de alimento a outras pequenas histórias. Então, entreolharam-se pela última vez essa noite, e deitaram-se para se amarem até de madrugada. Sobre o verde reluziam os corpos unidos, dilatando-se no silêncio como dois raios de sol.
A chuva tornou-se branda e em breve as ervas daninhas se tornaram lençóis. As crianças acordaram embaladas pelo ar morno da manhã. Abriram os olhos sem se lembrarem do que tinham juntas sonhado. Acotovelaram-se espreguiçando-se longamente. Esfregaram os olhos e observaram-se - este olhar levantou silêncio.
Havia algo escrito por debaixo dos lábios mas as crianças não sabiam ler. Havia algo a romper de dentro dos olhos mas as crianças não conseguiam ver. Restava um sabor de certeza e sangue, que elas conheciam sem terem ainda provado.
Então, como sábios decidiram esperar, sabendo que haviam de cumprir todas as profecias que ainda desconheciam.



Fim




17/04/10

Meia História

 


- Merda.


Pensa ele, e murmura:

- Não está no casaco não está no casaco.
Não está nas calças não está nas calç... Não...
Não está... na mala...


Ele tinha perdido o relógio e não havia mais nada em casa para penhorar. Os pés estavam frios de gastar o linóleo da casa vazia a tentar encontrar uma solução.

- Não está na camisa.

É o final da história. E o início cavalga lá atrás para longe de nós, como é de costume. Passado. Presente. São forças que se opoem. São mentiras que se contradizem, por falhas de engenharia.
Não estava no passeio, não estava na estrada. Não estava mais atrás nem mais ao lado. Não estava preso às roupas.
Foi-se. Acabou. Adeusinho.


Ele salta de fúria pela rua abaixo.
Acabaram-se as pessoas para enganar.
Acabaram-se os esquemas para inventar.
Acabaram-se as mentiras para impingir.


Rasteja angustiado até à porta de casa. Passa o resto do dia frenético na cadeira de baloiço, a tentar entreter os pés. Ninguém lhe telefona. Ele pensa em como seria agradável acreditar em alguma coisa. O que é que lhe vai acontecer?

O que é que lhe vai acontecer, penso. Podia não lhe acontecer nada.
Se eu não terminar esta história.


Confesso que gostava de o fazer encontrar o relógio, estupidamente posto à volta do seu pulso há horas. Ele paralisaria de choque mas acabaria a rir. Tudo acabaria bem.
Ou então ele decidiria partir, mudar as coisas, lutar.
...Mas nunca se vai saber. Eu nunca hei-de escrever o final para isto. Apenas porque posso deixá-lo à espera naquela cadeira de baloiço para toda a eternidade. E ele nunca vai envelhecer. Sim, é isso.


É glorioso, na verdade.

Em troca de um relógio, ofereci imortalidade.
Hoje sinto-me bondosa.


06/01/10

Pensamentos Profundos (9 de Agosto)

Ri-se de mim: Tu consegues lá pensamentos profundos sem estares completamente charrada.

Mando-a ir-se foder. Consigo sim. Sou a porra de uma metralhadora de pensamentos profundos. Vê-me só.

Não encontro uma caneta. Desisto. Ela ri-se outra vez, disfarçadamente. Vou até à cozinha, enfio um chupa na boca e dispo os calções e as cuecas. Sento-me na bancada com ar de puta e assobio. Ela vem. Quando me vê de pernas abertas, começa a andar devagarinho como um gato matreiro, e como um gato baixa ligeiramente a cabeça para não dar nas vistas. Quando está muito perto de mim, cheira-me o pescoço como se eu lhe fosse estranha. Depois arranca-me o chupa da boca e passa-o entre as minhas pernas. Eu sustenho a respiração, chocada, punida. Ela enfia o chupa na boca e roda-o lá dentro, esfregando-o na língua, com a boca aberta. Depois diz: Não prestas para nada.

Depois repete: Não prestas.

Agarro-a pelo pescoço com tanta força que os olhos quase lhe saltam. Num impulso atiro-a ao chão, não bate com a cabeça porque se apoia nos cotovelos, mas os longos cabelos castanhos agitam-se ondulantes em câmara lenta.

Depois sento-me na cara dela e faço-a pedir-me desculpa. Ela resiste. Eu agarro-lhe os cabelos e monto-a, vingativa. Ela cede e agarra-me as coxas enquanto se alimenta de mim.

A TV ficou ligada, oiço o noticiário da sala, começou a época de incêndios. Ardem colheitas, casas, animais. Árvores centenárias. Olho para baixo e ela continua a lamber, não se podia estar mais nas tintas. Há pequenas gotas de suor a escorregar em volta do pescoço moreno. Penso em levá-las para apagar os fogos. Mas em vez disso deixo-me estar.

O repórter da televisão fala em mortos, fala em lares destruídos, em famílias desesperadas. Sentada na cara dela, eu fecho os olhos e tento ter pensamentos profundos.

Divagações em Dueto (12 de Julho)

(...) A única parte divina acerca dos acontecimentos é, justamente, a Escolha. E a única parte misteriosa somos, surpreendentemente, nós mesmos, arquitectos e construtores distraídos das obras de arte com que nos deparamos, desconhecendo que é nosso o mérito, e não da Coincidência.

Poderás responder, - e o fluxo que corre dentro de nós, não será ele divino? – e eu responderei, sim, absolutamente. Mas será ele sempre a comandar os nossos pés, as nossas mãos? Será ele quem traz os momentos-chave até nós? Ou será ele apenas o processador? – E tu, cheia da sabedoria da tua paixão, responderás, mas não estará o fluxo divino em tudo? Nas mãos, nos pés, nos acontecimentos, na brisa, nas sensações, nas aparentes coincidências? E eu render-me-ei – sim, tens razão. Tudo é divino, tal como nós. Somos criação, depois criadores. – E no fim faremos amor até anoitecer, porque nada mais nos resta.