03/12/10

Purpurina


Ontem de madrugada chegaste a casa com um balão vermelho. Tapaste-me os olhos enquanto me deslizavas pelas escadas abaixo. Abriste uma porta diante de mim e pude antecipar pelas frestas entre os dedos um cheiro de brancura a chamar remotas memórias. Deixaste-me ver, generosa.
A neve caía apoteótica ao longo da rua inteira. Os carros, os passeios, os arbustos cheios de bagas vermelhas nos quintais, tudo ostentava uma cobertura cintilante. Intocada.
No chão eram visíveis apenas as pegadas das raposas, em velozes filas de patinhas a fugir de cada revolver misterioso na escuridão.
Rodopiámos na estrada, levantando espirais de encantamento. Deitámo-nos no chão, vendo as estrelas entornar milhares de cristais. Beijámos as beiradas dos muros e juntámos os lábios cheios de neve para derretê-la. O mundo é tão mais bonito quando ninguém espreita para ver.
Gosto das noites aqui, brancas e frias. Inspiram-me um terror particular. Mantém toda a gente escondida a sugar da televisão, enrolados em cobertores. E acordamos a trabalhar, adormecemos a contar dinheiro. O frio relembra-me - sinto. O gelo enfraquece-me - vacilo.
Olhando para cima vejo o absoluto infinito espalhar purpurinas por cima de mim. E nesses momentos sei que por muito tempo que passe a destruir-me, vou sempre acabar por me arrepender.

Sem comentários:

Enviar um comentário