09/12/10

Acerca da minha avó

A minha avó morreu com um penteado novo. Mas eu vou sempre recordá-la com cabelos de rapunzel, aprisionados numa grande rosca acinzentada atrás da cabeça. Costumava fantasiar acerca da longitude dos cabelos dela porque nunca os via caídos; imaginava-os infinitos, prateados, cheios de histórias antigas a romper e a emaranhar-se.
Tinha muitas histórias, a minha avó. E era capaz de falar durante horas seguidas, sem que ninguém lhe tivesse perguntado nada. Era preciso prestar alguma atenção, emitir sons de concordância, acenar ligeiramente com a cabeça. As narrativas seguiam-se umas às outras, muitas vezes interrompendo-se ou misturando-se por meio de subtis ligações. Era difícil acompanhar, e não se podia estar realmente interessado no final de uma história porque o final da história levava muito, muito tempo a chegar. Outras histórias sempre se metiam no caminho, às cabeçadas, com outros nomes e circunstâncias que exigiam ser evocados.
Se a deixássemos falar durante muito tempo, por vezes ela começava a chorar, porque no trilho de uma lembrança dava de caras com algum arrependimento passado, uma saudade intolerável ou a simples dor de existir. Estes longos monólogos terminavam, nessas alturas, num doce pranto de lágrimas que pediam perdão.

Apesar de tanto falar, a minha avó levou muito tempo a conseguir dizer as coisas mais importantes. Apenas pouco antes de morrer me disse que gostava muito de mim. E sufoquei de tal maneira em perplexidade que não fui capaz de lhe responder. Esse momento assombra-me até agora. E passei muitas noites chorosas a responder-lhe contra a almofada, a implorar-lhe que ainda me oiça, que não tenha já desaparecido.
Eu não sei da minha avó. Não sei para onde vão todas estas pessoas que adormecem e não acordam. Se perdem o nome, se perdem a memória, se perdem os sentidos. Se são substituídas apenas por um zumbido invisível de cinzas e lamentações.
O único arrependimento que tenho nesta vida é não me ter assegurado de que a minha avó sabia que eu gostava muito dela também. Antes de partir para a sua viagem misteriosa.
E estou só a tentar fazer tudo o que posso, tudo o que posso imaginar. Se ela não me sente talvez me oiça. Se não me ouve... talvez me leia.

2 comentários:

  1. e é engraçado como... por mais textos deste género que leia, onde falam como gostavam de dizer o quanto amam aqueles que já partiram... mesmo assim... sinto aversão, medo, desconforto, não sei a palavra que melhor descreve o que sinto... em dizer gosto de ti aqueles que amo... parece que estou sempre à espera que eles partam para eu sentir realmente a dor e aí sim... talvez por desespero, ter necessidade de expressar o meu amor. mas isso é a natureza humana suponho, só agimos quando sentimos... ou mais facilmente agimos quando sentimos... tipo e generalizando... olha não deites lixo para o chão nem poluas o planeta que isso faz mal ao planeta e a todos nós... a pessoa é capaz de bem cagar no assunto. se em vez disso, levassemos a pessoa a viver durante uma semaninha sem condições de higiéne, de alimentação e por aí fora... a pessoa ia sentir na pele e se calhar aí ia pelo menos ponderar pensar no assunto...

    enfins... isto é capaz de não estar muito perceptível e com demasiadas reticências... mas enfim foi o que saiu lol

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  2. Oi Sofia :) entendo o que queres dizer, é verdade que esperamos para sentir a dor até agirmos. mas quando bate a compreensão e a dor e é tarde demais, essa experiência pode servir para nos insensibilizar ainda mais, como 'defesa', ou então para aprendermos e tentarmos evoluir. quanto a mim ainda não sei como vou digerir tudo isto, mas sei que quando a minha outra avó adoeceu eu sabia que não havia tempo para ter medo, dei-lhe todos os abraços que consegui dar e fiquei bem junto dela até ao fim.

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