22/01/10

Retiro


Fizemos um retiro de quatro dias no sótão. Cheirava a ganzas e a incenso. Os dois fumos misturavam-se no ar como cavalos em corrida leve. Os cobertores misturavam-se com os pés como melaço, escorregando pelos dedos pacientes.


Deixámos as palavras subirem, descomprimidas no tecto inclinado. O baixo da música rugia contra as nossas nádegas sentadas.


A vida foi doce, nesses dias. Sem frio, sem fome, sem sono. Tudo parecia fumegar. Até os actores dos filmes antigos em que nos confundíamos com cada olhar.


Trincámos bolachas de canela e desistimos permanentemente do scrabble, em que ela fixava perdidamente as peças sem lhes encontrar sentido.


Debatemos o poder, a culinária, o sexo, os amendoins. Fiz massa em forma de lacinhos. Descansámos no telejornal e ouvimos a chuva dedilhar insistentemente as ondas do som.


As noites foram brandas de luzes, de velas meio acesas, de televisões meio apagadas. Os aquecedores seguiam-nos sozinhos para todo o lado como velhos rafeiros. A piscar de exaustão.


Como disse, foram lentos e doces esses dias, e vive-los-ei para sempre. Porque enquanto me lembro, vivo; enquanto recordo, aumento. E é nisto em que estou a pensar agora, enquanto escrevo o que estou ainda a viver.




21-01-10 (O 4º dia)

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