18/04/10
17/04/10
Meia História
- Merda.
Pensa ele, e murmura:
- Não está no casaco não está no casaco.
Não está nas calças não está nas calç... Não...
Não está... na mala...
Ele tinha perdido o relógio e não havia mais nada em casa para penhorar. Os pés estavam frios de gastar o linóleo da casa vazia a tentar encontrar uma solução.
- Não está na camisa.
É o final da história. E o início cavalga lá atrás para longe de nós, como é de costume. Passado. Presente. São forças que se opoem. São mentiras que se contradizem, por falhas de engenharia.
Não estava no passeio, não estava na estrada. Não estava mais atrás nem mais ao lado. Não estava preso às roupas.
Foi-se. Acabou. Adeusinho.
Ele salta de fúria pela rua abaixo.
Acabaram-se as pessoas para enganar.
Acabaram-se os esquemas para inventar.
Acabaram-se as mentiras para impingir.
Rasteja angustiado até à porta de casa. Passa o resto do dia frenético na cadeira de baloiço, a tentar entreter os pés. Ninguém lhe telefona. Ele pensa em como seria agradável acreditar em alguma coisa. O que é que lhe vai acontecer?
O que é que lhe vai acontecer, penso. Podia não lhe acontecer nada.
Se eu não terminar esta história.
Confesso que gostava de o fazer encontrar o relógio, estupidamente posto à volta do seu pulso há horas. Ele paralisaria de choque mas acabaria a rir. Tudo acabaria bem.
Ou então ele decidiria partir, mudar as coisas, lutar.
...Mas nunca se vai saber. Eu nunca hei-de escrever o final para isto. Apenas porque posso deixá-lo à espera naquela cadeira de baloiço para toda a eternidade. E ele nunca vai envelhecer. Sim, é isso.
É glorioso, na verdade.
Em troca de um relógio, ofereci imortalidade.
Hoje sinto-me bondosa.
13/04/10
Amigos
Abro-vos as minhas portas, a minha mente. Bate frenético por vós o meu coração, desde o primeiro instante. Ainda nem mexeram os lábios e são já profetas, ainda não me pegaram na mão e são já milagreiros.
Vivemos tempos de chuva, horas injustas. Eu gritei por vós, defendi a candura, o amor que via nos vossos olhos.
Para quê?
Para me saber tão amada que me vejo sozinha. Para me saber tão boa que me vejo apodrecida. Para me saber tão protegida que rebolo aos trambolhões em direcção ao amanhã.
Obrigado, amigos.
12/04/10
É De Noite
As minhas noites costumavam ser segredos intransmissíveis. No meio das multidões, eu erguia-me mais solitária do que nunca. Sentia trazidas pelo ar umas badaladas atordoantes que faziam vibrar o mundo, levantando uma data de pó dentro da minha cabeça.
As minhas noites faziam-se de perfumes viciantes e holofotes apontados aos meus olhos. A música era quase intolerável por debaixo da cortina de desconcentração em que me movia de um lado para o outro.
Suores estranhos vinham ter com os meus lábios e excitavam-me as asas. Eu abria o meu peito e deixava a loucura sair, dando conta das marcas só na manhã seguinte.
A minha boca provou o sabor de todos aqueles cigarros. Por amor, por complacência, por submissão. Abri a minha boca para provar todos aqueles fumos, mesmo os de quem nunca conheci. Mesmo os de quem nunca vi.
Mesmo os de quem nunca olhou.
Podia rodopiar em torno de cada par de sapatos e mesmo assim a última música ainda não teria chegado. Porque a última música nunca chega no fim.
As minhas noites costumavam ser esconderijos de dor para fugir ao sofrimento. Quem me viu certamente me compreenderá. Quem lá estava buscava também fugir a este silêncio.
Em que me afogo agora.
Mas não queria sinos monumentais a berrar badaladas nos meus ouvidos. Nem rodopiar pela noite adentro até me desmoronar. Não quero beijos insinceros de uma sede já muito regada.
O que eu quero é conquistar sem medo os meus próprios corredores. Denunciar quem sou em cada rasto no chão. E ao fim da noite, puxar para o quarto aquele
alguém
que deseje beber o fumo das minhas asas acesas.
07/04/10
Entardecer da revolução
Vejo-me, portanto, sozinha. Eu contra todos. O meu pior pesadelo. O pesadelo que, aliás, faria qualquer sanguinário molhar os lençóis. A solidão pura e absoluta.
No fim do dia vagueio, cansada, alguém chama o meu nome mas não reconheço o som, e rumino as palavras enquanto caminho. Se começa a chover arrependo-me, choro, quero afecto, mas só tenho abutres resignados com o pôr-do-sol. E quanto mais eles te vêem, menos tu existes.
Estes Homens
Vivem lado a lado com os seus reflexos nos autocarros, nos comboios, nos metropolitanos. E miram-se, cansados, sem sorrir.
Estes homens têm casas atravancadas com mulheres rabugentas à espera. Mas elas esperam para sempre, porque eles nunca regressarão. Fazem rondas à volta e por dentro da cidade. De dia e de noite, eles estão por todo o lado, sentados nos banquinhos infestados dos transportes públicos, de mãos pousadas nos estofos berrantes.
São quase transparentes, meros trambolhos a congestionar as vias. São obstáculos à nossa pressa nas grandes escadas do metro. Os vultos passam junto deles à velocidade da luz, sem olhar.
Tudo o que eles precisam é de um sorriso. Um sorriso de um estranho. Com o olhar inequivocamente direccionado para eles, um momento antes de eles se desvanecerem no espaço. E apenas esse sorriso libertará estes homens da intemporal vagueação pela urbe.
Estes homens trazem nos olhos a carência renovada do Universo. E nos braços um tal vazio que se consegue alimentar de si mesmo, mastigando as vozes remotas que indicam a próxima paragem.