21/12/10
Este muro
Se sentiste em ti o meu cheiro, porque não olhaste para mim?
Ou não sabes que viajo contigo para todo o lugar?
Ou não sabes que vou a planar nas costas das tuas mãos?
Para todos os cantos, todos os becos.
Se sabias que estava contigo, porque não me tocaste?
Porque não esticaste os dedos para me sentir a face queimada?
Ou não sabes que estamos presas, tua a faca e minha a cicatriz?
Ou não sabes que um beijo é uma fechadura por onde se espreita?
Desejaste que me anulasse. Como carta extraviada. Fechaste-me os olhos cortaste-me as mãos. Enterraste lenços de seda nos meus ouvidos.
Neste muro atrás de mim escreveste as tuas indiscrições.
E depois mandaste-me ir em frente.
Se sentiste em ti o meu cheiro, porque não olhaste para mim?
Ou não sabes que viajo contigo para todo o lugar?
Ou não sabes que vou a planar nas costas das tuas mãos? Para todos os cantos, todos os becos.
Se sabias que eu estava contigo, porque não me tocaste?
Porque não esticaste os dedos para me sentir a face queimada?
Ou não sabes que estamos presas, tua a faca e minha a cicatriz?
Ou não sabes que um beijo é uma fechadura por onde se espreita?
Desejaste que me anulasse. Fechar-me os olhos cortar-me as mãos. Enterraste lenços de seda nos meus ouvidos. Escreveste indiscrições
15/12/10
11/12/10
Sing
Sing for the bartender sing for the janitor sing
Sing for the cameras sing for the animals sing
Sing for the children shooting the children sing
Sing for the teachers who told you that you couldn't sing.
09/12/10
Acerca da minha avó
Tinha muitas histórias, a minha avó. E era capaz de falar durante horas seguidas, sem que ninguém lhe tivesse perguntado nada. Era preciso prestar alguma atenção, emitir sons de concordância, acenar ligeiramente com a cabeça. As narrativas seguiam-se umas às outras, muitas vezes interrompendo-se ou misturando-se por meio de subtis ligações. Era difícil acompanhar, e não se podia estar realmente interessado no final de uma história porque o final da história levava muito, muito tempo a chegar. Outras histórias sempre se metiam no caminho, às cabeçadas, com outros nomes e circunstâncias que exigiam ser evocados.
Se a deixássemos falar durante muito tempo, por vezes ela começava a chorar, porque no trilho de uma lembrança dava de caras com algum arrependimento passado, uma saudade intolerável ou a simples dor de existir. Estes longos monólogos terminavam, nessas alturas, num doce pranto de lágrimas que pediam perdão.
Apesar de tanto falar, a minha avó levou muito tempo a conseguir dizer as coisas mais importantes. Apenas pouco antes de morrer me disse que gostava muito de mim. E sufoquei de tal maneira em perplexidade que não fui capaz de lhe responder. Esse momento assombra-me até agora. E passei muitas noites chorosas a responder-lhe contra a almofada, a implorar-lhe que ainda me oiça, que não tenha já desaparecido.
Eu não sei da minha avó. Não sei para onde vão todas estas pessoas que adormecem e não acordam. Se perdem o nome, se perdem a memória, se perdem os sentidos. Se são substituídas apenas por um zumbido invisível de cinzas e lamentações.
O único arrependimento que tenho nesta vida é não me ter assegurado de que a minha avó sabia que eu gostava muito dela também. Antes de partir para a sua viagem misteriosa.
E estou só a tentar fazer tudo o que posso, tudo o que posso imaginar. Se ela não me sente talvez me oiça. Se não me ouve... talvez me leia.
08/12/10
Costumava fantasiar acerca da longitude dos cabelos dela porque nunca os via caídos; imaginava-os infinitos, prateados, cheios de histórias antigas a romper e a emaranhar-se.
Tinha muitas histórias, a minha avó. E era capaz de falar durante horas seguidas, sem que ninguém lhe tivesse perguntado nada. Era preciso prestar alguma atenção, emitir sons de concordância, acenar ligeiramente com a cabeça. As narrativas seguiam-se umas às outras, muitas vezes interrompendo-se ou misturando-se por meio de subtis ligações. Era difícil acompanhar, e não se podia estar realmente interessado no final de uma história porque o final da história levava muito, muito tempo a chegar. Outras histórias sempre se metiam no caminho, às cabeçadas, com outros nomes e circunstâncias que exigiam ser evocados.
Se a deixássemos falar durante muito tempo, por vezes ela começava a chorar, porque no trilho de uma dessas lembranças dava de caras com algum arrependimento passado, uma saudade intolerável ou a simples dor de existir. Estes longos monólogos terminavam, nessas alturas, num doce pranto de lágrimas que cham.
04/12/10
03/12/10
Purpurina
Ontem de madrugada chegaste a casa com um balão vermelho. Tapaste-me os olhos enquanto me deslizavas pelas escadas abaixo. Abriste uma porta diante de mim e pude antecipar pelas frestas entre os dedos um cheiro de brancura a chamar remotas memórias. Deixaste-me ver, generosa.
A neve caía apoteótica ao longo da rua inteira. Os carros, os passeios, os arbustos cheios de bagas vermelhas nos quintais, tudo ostentava uma cobertura cintilante. Intocada.
No chão eram visíveis apenas as pegadas das raposas, em velozes filas de patinhas a fugir de cada revolver misterioso na escuridão.
Rodopiámos na estrada, levantando espirais de encantamento. Deitámo-nos no chão, vendo as estrelas entornar milhares de cristais. Beijámos as beiradas dos muros e juntámos os lábios cheios de neve para derretê-la. O mundo é tão mais bonito quando ninguém espreita para ver.
Gosto das noites aqui, brancas e frias. Inspiram-me um terror particular. Mantém toda a gente escondida a sugar da televisão, enrolados em cobertores. E acordamos a trabalhar, adormecemos a contar dinheiro. O frio relembra-me - sinto. O gelo enfraquece-me - vacilo.
Olhando para cima vejo o absoluto infinito espalhar purpurinas por cima de mim. E nesses momentos sei que por muito tempo que passe a destruir-me, vou sempre acabar por me arrepender.
A neve caía apoteótica sobre o mundo inteiro. Os carros, os passeios, os arbustos cheios de bagas vernelhas nos quintais, tudo o que eu conhecia ostentava uma cobertura cintilante. Intocada.
No chão eram visíveis apenas as pegadas das raposas, em velozes filas de patinhas a fugir a cada revolver misterioso no escuro.
01/12/10
Nostalgia
Imagens bafientas das minhas vidas passadas projectam-se em torno de mim. São fracas. Translúcidas. Mas o meu coração agita-se rapidamente perante familiaridades.
Desejo permanecer. O eterno sonho impossível. Mas não vou cultivar ilusões, antes viver em saudade.
Não sinto falta do meu reflexo. Nem do amor que jorrava do meu peito, solto e a desperdiçar-se permanentemente. Não.
Sinto falta da minha estupidez - mais do que tudo. Da minha credulidade, dos meus passos perdidos em direcção aos caminhos errados. Sinto falta de acreditar piamente que seria capaz de segurar quem amava junto de mim até ao fim de toda a existência.
É estranho como podemos amar tanto uma mentira que já desmascarámos. E sentir tanto a sua falta que mesmo assim a chamamos, vez após vez.