28/02/10

Luzes da cidade

Se não dormisse já a criança no meu colo, hoje eu corria até chegar ao escuro. Como anseio... pela escuridão. Por essa cegueira divina que há tanto foi expulsa das ruas. Em todo o lado, a claridade poderosa persegue-me como um castigo. Esta noite, eu deixava a cidade e esta não-vida


tão desprovida de luz


tão carregada de luzes.

24/02/10

É mais que tempo de alguém ficar chateado II


Quando têm a oportunidade de falar para o grande público,uma das maiores preocupações dos activistas é a de não parecerem maluquinhos. Hoje, sei que se eles pareceram alguma vez maluquinhos, é porque as pessoas transformam em “maluquinhos” todos aqueles que dizem a verdade que elas não querem ouvir. Isto passou-se ao longo da História, vezes incontáveis. E por muito inacreditável que seja, continua a fazer-se! Sim, tal como o racismo e as calças de cintura subida, já passa muito da hora de ser ultrapassado.


Eu sei que há pessoas que me consideram ingénua por tentar convencer quem conheço a adequar os seus comportamentos aos seus ideais. A mudar a maneira como vivem conforme aquilo que realmente acreditam que é correcto. Há quem me diga que não faz realmente diferença como agimos, porque ninguém age correctamente em relação a tudo, e que por isso umas pessoas agem bem numas coisas, e outras noutras. E a isso eu respondo, que merda é essa? É compreensível que meia dúzia de gajos não saiba pensar por eles próprios e simplesmente se deixe levar na cantiga, mas não gente como nós. Pessoas boas, convictas, fortes. Então o plano é cada um fazer de forma correcta aquilo que lhe apetece? Um dá porrada ao cão mas faz reciclagem, outro paga os impostos mas abusa da filha? E de alguma maneira, convencem-se que feitas as contas, isto no fim vai dar tudo certo? Estão muitíssimo enganados.


E desde quando é que o facto de os outros agirem mal é desculpa para nós agirmos mal também? Afinal de contas, essa parece-me apenas MAIS UMA razão para procurarmos destacar-nos como exemplo.


Mais uma vez, chamem-me ingénua por sequer me dar ao trabalho de escrever isto. Toda-a-gente-está-farta-de-saber-que-está-tudo-muito-mal, não é? Como se a culpa não fosse de ninguém. Ou só pertencesse aos homens sentados nos lugares mais altos. A verdade é que as revoluções que usamos orgulhosamente ao peito foram feitas pelas pessoas como nós. Teremos esquecido?


E se temos esse poder, temos, queiram desculpar, essa inegável responsabilidade.


Hoje estou chateada.

Se aprendi alguma coisa com a filosofia

Se aprendi alguma coisa com a filosofia, 

é que se tu não sabes tudo, não sabes nada. 

E que ninguém sabe tudo.

Na Barriga da Baleia





23/02/10

Estou cansada de uma civilização da qual é suposto eu sentir-me parte. Até as gotas da chuva parecem patrocinadas por algum shampoo. E quantos mais cartazes eu vejo, com caras sorridentes ampliadas 50 vezes, a uma escala na qual naturalmente nunca veríamos a cara de ninguém, mais esta pele humana me perturba.

Às vezes no centro comercial sinto-me no meio de um formigueiro. Vejo toda a gente a andar, sentindo-se tão importante. Penso na quantidade de lixo que cada pessoa daquelas come e deita fora. Na quantidade de audiências que daquelas pessoas provêm para todos os canais de televisão. A quantidade de vidas desperdiçadas no centro comercial quando é necessária tanta ajuda em todo o lado. A minha vida incluída.

É mais que tempo de alguém ficar chateado

Desde há algum tempo, eu não sei em que acreditar. Toda a gente sofre de uma extrema necessidade e pressão para ter coisas para dizer, por isso creio que não é raro fabricarem significados por inércia. Inventarem razão.
E graças à embriaguez que a lógica proporciona, tudo pode fazer sentido.


Às vezes não consigo sair à rua, doente de fobia. As ruas pontapeiam-me por todas as frentes com mensagens iguais, mascaradas de diferentes. "Compre". Erguidas em cimento, plástico e palavras.
Sim, eles tomaram conta das palavras. Acreditam nisto? (Olhem para mim a fazer de conta que alguém se importa.) E aprenderam a foder-nos com elas.
Sabem todas as subtilezas, sugestões. Como nos fazer sentir fome, como nos dar tesão. Está tudo programado. E nós respondemos.






Hoje e para sempre, nós passamos impávidos por um cartaz publicitário gigantesco de uma mulher a segurar uma cerveja. E ela tem mamas grandes, e a cabeça foi cortada da fotografia.  E nós não nos levantamos, em raiva? Não dizemos "Mamas e cerveja?! Nada ainda mais óbvio para nos venderem essa porcaria?! Vão ter que tentar mais que isso! Mas quem é que pensam que anda aqui?!"


Ninguém se passa da cabeça e queima aquela merda? Ninguém é subitamente injectado por uma poderosa sensação que nos diz que estamos a ser constantemente e permanentemente diminuídos?


Não. Nós não fazemos um c*. Nós ainda compramos aquela cerveja e pagamos aos imbecis. Eles fazem de nós prostitutas. Crescem em cima de nós. Nós aceitamos ser os neandertais que respondem às palavras-chave dos poderosos. Mamas. Cerveja.
E com o passar da vida, pagamos isso com o couro, com o dinheiro, com a vida, com a integridade, com a consciência. Com a lucidez.


Tanto penso em tudo isto que me corrói. Sei que um dia esta semente vai romper dentro de mim, e eu não vou conseguir esconder mais que, como sempre soube, sou incapaz de pertencer aqui.


Mas não sei se algum dia vou saber o que é a vida sem estas poluições. Estou já tão infectada. Não sei o que me vai vencer primeiro. Espero que nunca o cansaço.


Desde há algum tempo, eu não sei em que acreditar.
Toda a gente tem alguma teoria. Mas ninguém quer assim tanto aprender. Toda a gente reage de forma inflexível ao que lhe é desconfortável. Pelo menos no início. Toda a gente tem complexos.






Leva muito tempo e muitas vidas para criar alguma mudança, se essa mudança for construída sem sangue e sem mentira. Leva muita tolerância e sofrimento. Muito peso, muita falta de sono.
É difícil porque toda a gente fala tão compulsivamente. É difícil porque toda a gente tem uma imagem do que devia ser. É difícil por causa dos cartazes publicitários. Difícil para quem não tem mamas grandes. Mas acima de tudo, difícil porque com tudo isto resta muito pouco tempo para ouvir. Resta muito pouco silêncio para pacificar. E demasiados vícios.


Era tão bom sair à rua e saber. Que em tudo o que faço sou eu. Que ninguém antes de mim escreveu os pensamentos na minha cabeça. Que ninguém me fará sentir mal por ser como sou, faltando ao respeito à própria Natureza que piedosamente criou até o timbre da sua voz.


É mais que tempo de alguém ficar chateado.




24-02-10

Desde há algum tempo, eu não sei em que acreditar. Toda a gente sofre de uma extrema necessidade e pressão para ter coisas para dizer, por isso creio que não é raro fabricarem significados por inércia. Inventarem razão.
E graças à embriaguez da lógica, fazem com que tudo possa ter sentido.

Às vezes não consigo sair à rua, doente de fobia. As ruas pontapeiam-me por todas as frentes com mensagens iguais. "Compre". Erguidas em cimento, plástico e palavras.

Sim, eles tomaram conta das palavras. E aprenderam a foder-nos com elas.
Sabem todas as subtilezas, sugestões. O que nos dá fome, o que nos dá tesão. Hoje e para sempre, nós passamos impávidos por um cartaz de 20 metros de uma mulher a segurar uma cerveja. E ela tem mamas grandes, e a cabeça foi cortada da fotografia. Mamas e cerveja, é o que se nos apresenta. E nós não nos levantamos, em raiva?! E nós não queimamos aquela merda?! Nós ainda compramos aquela cerveja! Nós aceitamos ser os neandertais que respondem a palavras chaves dos todos-poderosos. E pagamos isso com o couro, com o dinheiro, com a vida, com a integridade, com a consciência. Com a lucidez.
Até as gotas da chuva parecem patrocinadas por algum shampoo.
Estou cansada de uma civilização da qual é suposto eu sentir-me parte. Quantos mais cartazes eu vejo à beira da estrada, com corpos e rostos de largos metros de tamanho,

Acho que nunca vou saber o que é a vida sem estas poluições.

Toda a gente tem alguma teoria. Toda a gente se mostra inflexível em relação a alguma coisa. Toda a gente tem desconfortos e complexos. Nenhum de nós é tão aberto como pensa.
Desde há algum tempo, eu não sei em que acreditar. Toda a gente sofre de uma extrema necessidade e pressão para ter coisas para dizer, por isso creio que não é raro fabricarem significados por inércia. Inventarem razão.

Às vezes nem consigo sair à rua, doente de fobia a rostos. As ruas pontapeiam-me com mensagens e movimento. Até as gotas da chuva parecem patrocinadas por algum shampoo. Estou cansada de uma civilização da qual é suposto eu sentir-me parte. Quantos mais cartazes eu vejo à beira da estrada, com corpos e rostos de largos metros de tamanho,

Acho que nunca vou saber o que é a vida sem estas poluições.

Toda a gente tem alguma teoria. Toda a gente se mostra inflexível em relação a alguma coisa. Toda a gente tem desconfortos e complexos. Nenhum de nós é tão aberto como pensa.

22/02/10

Tu

És como sacudir a cabeça no meio do escuro, ver faíscas voarem do meu cabelo como insectos assustados.
És todos os sonhos inacabados para os quais inventamos finais depois do acordar.
És como a brisa que cai todas as manhãs. Sem pára-quedas.



Em ti, escrevem-se todos os segredos
as vidas que se levantam e as vozes que as chamaram.
As noites tricotadas pelas perguntas. O quanto amamos.



De ti, o murmúrio no vazio da noite. Sem rosto, sem cor, só a forma esbatida e a nudez da voz:


- Princesa.




E todos os meus silêncios se calam, finalmente.



23-02-10





«Nights when the heat had gone out
We danced together alone
Cold turned our breath into clouds
We never said what we were dreaming of
But you turned me into somebody loved.»

10/02/10

Gosto quando oiço algum senhor na televisão a dizer "nós, a humanidade". Faz-me sentir como se fosse parte da família dele. Como se, afinal, houvesse uma união qualquer. Uma igualdade. Estamos em qualquer coisa juntos - a nossa condição.

Para mim, alguém dizer que faz parte da humanidade

07/02/10

Aniversário


Hoje faço anos e pus-me a pensar.
Vinha no carro a olhar para as malditas gotas de chuva a dançar no vidro. Deixam-nos sempre nostálgicos, não é? Pensei, elas não têm mente. Atravessam a vida sem convicção, sem vontade. E são intemporais, porque não usam relógio.
Estas gotas deixam-se escorregar. Dividem-se, confundem-se, competem. Contribuem para o ciclo complexo que torna a minha vida possível. Que milagre. A porra do mundo. Ao rever estes pensamentos apetece-me disparar um agrafador contra a minha própria testa.

Estou tão, tão cansada. Ainda sou apenas uma criança, e em termos relativos, o próprio planeta Terra é uma criança, e isso inclui tudo o que nele se passa desde há milhões de anos. É como se tivéssemos todos acabado de nascer. No entanto estamos sempre cansados. E não gostamos assim tanto de viver. Nunca nos sentimos realmente puros. E não exercemos assim tanto o que pensamos que está correcto. Não ajudamos assim tanto os outros. E nada nos apaixona o suficiente para nos tirar a corda do pescoço.


No nosso dia de anos, ficamos à espera de nos sentirmos diferentes. Olhamos em volta para as paredes, os quadros, os candeeiros, as cortinas. Buscamos um sinal, um qualquer piscar de olho secreto que certifique este dia como diferente dos restantes milhares. Especial. Melhor. E se acordámos especialmente psicóticos, somos capazes de esburacar o quintal inteiro com uma pá à procura da porra do motivo de celebração.


No nosso dia de anos, toda a gente se lembra subitamente da nossa existência. E daqueles que se esquecem, esquecemo-nos nós. Porque, afinal de contas, muitas dessas pessoas são figurantes sem rosto na nossa vida. E dos baratos. Daqueles que olham para a câmara.


Só quero terminar esta página dizendo que a vida é uma maravilha. E que se eu dissesse que era uma merda, ia dar ao mesmo. Porque é o que é. E tudo o que temos não é a nossa alma, não é a nossa mente, não são os nossos segredos. É o que fazemos com as nossas mãos. O que realmente fazemos. Não o que dizemos que vamos fazer, ou o que apregoamos que devia ser feito. Não. É aquilo em que tocamos, mesmo que seja para dar cabo de algo em que nunca devíamos ter metido o nariz.


Olho para as minhas mãos e vejo a tinta esborratada de tudo o que já escrevi. Como isto, sempre foi tudo pobre, confuso, prematuro. Está tudo cá.
Penso, isso não me serve para nada.
Mas que se lixe. Resisti a mais este dia.

03/02/10

Borboletas


Devíamos abrir os olhos


com as pontas dos dedos, suaves como borboletas


sem o medo da memória,



a nudez do acordar.





Devíamos estender as mãos


sedentos de mudança, a escrever a História


com a luz


como tinta


que tanto sangue custou derramar.




03-02-10