23/02/10

É mais que tempo de alguém ficar chateado

Desde há algum tempo, eu não sei em que acreditar. Toda a gente sofre de uma extrema necessidade e pressão para ter coisas para dizer, por isso creio que não é raro fabricarem significados por inércia. Inventarem razão.
E graças à embriaguez que a lógica proporciona, tudo pode fazer sentido.


Às vezes não consigo sair à rua, doente de fobia. As ruas pontapeiam-me por todas as frentes com mensagens iguais, mascaradas de diferentes. "Compre". Erguidas em cimento, plástico e palavras.
Sim, eles tomaram conta das palavras. Acreditam nisto? (Olhem para mim a fazer de conta que alguém se importa.) E aprenderam a foder-nos com elas.
Sabem todas as subtilezas, sugestões. Como nos fazer sentir fome, como nos dar tesão. Está tudo programado. E nós respondemos.






Hoje e para sempre, nós passamos impávidos por um cartaz publicitário gigantesco de uma mulher a segurar uma cerveja. E ela tem mamas grandes, e a cabeça foi cortada da fotografia.  E nós não nos levantamos, em raiva? Não dizemos "Mamas e cerveja?! Nada ainda mais óbvio para nos venderem essa porcaria?! Vão ter que tentar mais que isso! Mas quem é que pensam que anda aqui?!"


Ninguém se passa da cabeça e queima aquela merda? Ninguém é subitamente injectado por uma poderosa sensação que nos diz que estamos a ser constantemente e permanentemente diminuídos?


Não. Nós não fazemos um c*. Nós ainda compramos aquela cerveja e pagamos aos imbecis. Eles fazem de nós prostitutas. Crescem em cima de nós. Nós aceitamos ser os neandertais que respondem às palavras-chave dos poderosos. Mamas. Cerveja.
E com o passar da vida, pagamos isso com o couro, com o dinheiro, com a vida, com a integridade, com a consciência. Com a lucidez.


Tanto penso em tudo isto que me corrói. Sei que um dia esta semente vai romper dentro de mim, e eu não vou conseguir esconder mais que, como sempre soube, sou incapaz de pertencer aqui.


Mas não sei se algum dia vou saber o que é a vida sem estas poluições. Estou já tão infectada. Não sei o que me vai vencer primeiro. Espero que nunca o cansaço.


Desde há algum tempo, eu não sei em que acreditar.
Toda a gente tem alguma teoria. Mas ninguém quer assim tanto aprender. Toda a gente reage de forma inflexível ao que lhe é desconfortável. Pelo menos no início. Toda a gente tem complexos.






Leva muito tempo e muitas vidas para criar alguma mudança, se essa mudança for construída sem sangue e sem mentira. Leva muita tolerância e sofrimento. Muito peso, muita falta de sono.
É difícil porque toda a gente fala tão compulsivamente. É difícil porque toda a gente tem uma imagem do que devia ser. É difícil por causa dos cartazes publicitários. Difícil para quem não tem mamas grandes. Mas acima de tudo, difícil porque com tudo isto resta muito pouco tempo para ouvir. Resta muito pouco silêncio para pacificar. E demasiados vícios.


Era tão bom sair à rua e saber. Que em tudo o que faço sou eu. Que ninguém antes de mim escreveu os pensamentos na minha cabeça. Que ninguém me fará sentir mal por ser como sou, faltando ao respeito à própria Natureza que piedosamente criou até o timbre da sua voz.


É mais que tempo de alguém ficar chateado.




24-02-10

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